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ARTIGO
POR – GUSTAVO PORPINO*, PARA NEO MONDO
A agenda de segurança alimentar e nutricional deve contemplar, além das estratégias para garantir uma dieta nutritiva e saudável para a população, ações voltadas para a mitigação de perdas e desperdício de alimentos, fomento a circuitos curtos de produção e consumo e comunicação para mudança comportamental. Dado que aproximadamente 41% da população economicamente ativa do País atuam na economia informal, o que corresponde a 38,3 milhões de trabalhadores, e considerando ainda a paralisação econômica provocada pela necessidade do isolamento social, o risco de agravamento da insegurança alimentar é iminente se ações urgentes não forem articuladas em conjunto por diferentes níveis de governo em parceria com o setor produtivo.
Em momentos de crise, as ações emergenciais para minimizar o risco de insegurança alimentar entre a população mais carente podem contemplar quatro eixos de ação: 1. Logística de distribuição de alimentos para grupos em risco; 2. Legislação para incremento das doações de alimentos; 3. Comunicação para mudança comportamental positiva; e 4. Fortalecimento da rede emergencial de segurança alimentar e nutricional.
A rede brasileira de bancos de alimentos conta com, aproximadamente, 200 centros de distribuição, sendo em torno de 90 administrados pelo SESC, alguns instalados nas Ceasas, e outros tantos ligados a prefeituras ou ONGs. Deve ser feito um esforço para elevar o abastecimento destes bancos neste período de crise. O papel do poder público pode ser em duas vias: A) Incrementar as compras públicas de alimentos das cooperativas de pequenos produtores, também impactadas pela crise, e direcionar estes alimentos aos bancos, que atendem diversas instituições filantrópicas e podem ampliar a destinação de alimentos para centros comunitários das favelas, por exemplo; B) Estabelecer parcerias público-privadas emergenciais, a exemplo do que está sendo feito pelo Departamento de Agricultura dos EUA neste mês, para destinar o excedente do varejo e da indústria ao atendimento das famílias carentes que contavam com a merenda escolar para garantir a alimentação dos filhos. Frutas e legumes de má aparência, mas apropriados para consumo, alimentos industrializados próximos da data de vencimento, e ainda alimentos nutritivos de importância para a dieta infantil e com vida útil prolongada (Ex: leite em pó, mistura de cereais, fubá de milho) podem ser doados por grandes grupos varejistas e/ou pela indústria de alimentos.
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Modernizar a legislação para incremento das doações de alimentos é outra necessidade, que poderia ser acelerada em função da crise atual. O Legislativo brasileiro, desde 1998, quando foi proposta a chamada Lei do Bom Samaritano, ainda não aprovou um Projeto de Lei robusto de fomento às doações de alimentos e com incentivos para a redução das perdas e do desperdício de alimentos. O PL 5958/2013, que tem merecido mais atenção dos especialistas da Embrapa e consultores legislativos, cria a Política Nacional de Combate às Perdas e ao Desperdício de Alimentos. O momento é propício para ajustar tal PL e aprová-lo emergencialmente, com vistas a ampliar a destinação de alimentos do varejo e da indústria aos Bancos de Alimentos, por exemplo.
Parte do problema das perdas e do desperdício de alimentos está relacionado a fatores comportamentais. O quadro atual de crise também evidencia o quanto o comportamento dos consumidores pode gerar, por exemplo, desabastecimento de alguns produtos alimentícios e ainda agravar o desperdício. Temos um segmento que compra em abundância, faz estoque desnecessário e fomenta tanto o desabastecimento de alguns itens quanto a alta do preço pela demanda elevada. Outra parcela de famílias não está acostumada a cozinhar em casa, mas diante da quarentena, se viu obrigada a preparar refeições no lar e pode desperdiçar mais se não planejar bem as porções e, principalmente, se não souber reaproveitar as sobras.
O Governo Federal e seus órgãos mais alinhados à temática podem engajar-se mais em campanhas educativas para conscientizar a sociedade sobre o consumo sustentável. Em momentos de crise cresce a importância de valorizar o produtor local, evitar compras muito volumosas de alimentos, organizar bem o estoque e mostrar capacidade de aproveitar integralmente os alimentos. Na Inglaterra, por exemplo, agências governamentais tem fortalecido a comunicação educativa, voltada para mudança comportamental positiva, com orientações para os consumidores comprarem alimentos produzidos localmente, evitarem compras exageradas e dicas para manter uma alimentação saudável e sem desperdícios. A rede Champions 12.3, da qual a Embrapa faz parte como “amiga da iniciativa”, tem divulgado iniciativas de alguns países para reduzir perdas e desperdício de comida neste momento com fins de fortalecer a segurança alimentar e nutricional. Logística e comunicação são os principais eixos de ação.
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No Brasil, embora tenhamos aproximadamente duzentos bancos de alimentos, existe um desalinhamento entre a localização dos bancos e as regiões com maior incidência de insegurança alimentar. A maior parte dos bancos está localizada nas regiões sul e sudeste, e a insegurança alimentar é maior no norte e nordeste. O momento é propício para pôr em prática alternativas para ampliar a capilaridade da rede e discutir novas formas de garantir o acesso a alimentos nutritivos para populações que vivem, por exemplo, nas zonas rurais dos estados com maiores índices de insegurança alimentar, tais como Maranhão e Piauí. Dada a inexistência de Bancos de Alimentos em alguns bolsões de pobreza, ou mesmo o número muito limitado em grandes áreas urbanas, é necessário fortalecer o acesso a alimentos por outros meios, a exemplo de: A) Famílias inscritas no Bolsa Família podem ter acesso preferencial a cestas básicas, que podem ser encaminhadas a regiões pouco atendidas pelos bancos de alimentos; B) No médio prazo, pode se pensar em soluções mediadas por TICs. Por exemplo, é factível pensar em um aplicativo aberto para famílias do Cadastro Único, que contempla a população de baixa renda, para que possam acessar pontos de coleta de cestas básicas. Além disso, deve-se buscar meios para fortalecer as soluções mediadas por novas ferramentas digitais para aproximar indústria e varejistas dos bancos de alimentos.
Por fim, o Governo Federal deve liderar a retomada de uma política nacional de segurança alimentar e nutricional para o pós-crise. A Estratégia brasileira para redução das perdas e desperdício de alimentos, aprovada pela Câmara Iterministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) em 2017, não chegou a entrar em execução e precisa ser retomada. Do mesmo modo, a própria CAISAN nacional precisa voltar a atuar como um instrumento de aproximação dos órgãos públicos com o setor privado para o delineamento de políticas públicas ganha-ganha de segurança alimentar e nutricional. Além disso, é urgente a necessidade do Brasil voltar a mensurar os índices de insegurança alimentar da população. O último levantamento, realizado pelo IBGE, é de 2013. Mesmo países que não enfrentam tanta insegurança alimentar quanto o Brasil possuem políticas de Estado que possibilitam a mensuração anual da insegurança alimentar, fator essencial para o delineamento de políticas públicas mais precisas. A crise é oportunidade para valorizar o que importa e o Brasil tem amplas condições de expandir, internamente, a oferta de alimentos saudáveis às populações mais carentes.
*Gustavo Porpino – Analista da Embrapa Alimentos e Territórios. É doutor em marketing pela FGV-EAESP e foi pesquisador visitante da Universidade Cornell.
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